Futebol e política

Imagem: NEOSiAM
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Por HELCIO HERBERT NETO*

Quais os motivos que tornaram possíveis a emergência da conexão do moralismo e da política com o futebol há quase um século

1.

O jogo deixa de ter como palco, repentinamente, apenas o gramado e como espectadores somente os presentes no estádio: na década de 1930, a irradiação do futebol traz para o centro das reações sobre o esporte a multidão que passa a ser alcançada pelo rádio. Se desde as primeiras práticas esportivas no processo de urbanização das cidades brasileiras as disputas sociais e culturais estavam evidentes, com a emergência desses novos e entusiasmados participantes tornaria tudo mais intenso e incontrolável.

Os primeiros esboços de uma comunicação esportiva em larga escala, ainda no rádio amador dos anos 1920 e 1930, reúnem traços que atravessariam qualquer genealogia dos entrecruzamentos do futebol com a política. Do Rio de Janeiro, era transmitida a Hora Rubro-Negra, com os apresentadores Lauro Borges e Flavio Costa. O primeiro seria o responsável, no futuro, por consolidar uma expressão popular do humor em radiodifusão com Balança, Mas Não Cai na Rádio Nacional. E a comédia acompanharia a comunicação esportiva.

O segundo foi treinador de times profissionais e liderou a seleção brasileira na campanha em território nacional até a derrota para o time uruguaio, em 1950, no Maracanã. Não é apenas o clubismo que deve ser destacado dessa experiência, ainda amadora – embora a tomada de partido perante o esporte, desde as primeiras iniciativas no rádio, não deixe de ser um fator central. É a participação política, entre os envolvidos na comunicação, que não pode ser negligenciada: a candidatura do técnico durante a campanha foi uma realidade.

O assédio à concentração da delegação brasileira às vésperas da decisão contra a equipe do Uruguai e o clima de campeão antes do resultado poderiam ter sido impulsos para levar Flavio Costa à uma cadeira no Parlamento. A legenda escolhida foi o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), historicamente vinculado a Getúlio Vargas. Mas a frustração com o título uruguaio contribuiu para que a campanha não fosse alavancada pelos torcedores. A pretensão de representar os esportistas na política institucional ruiu.

A escolha da sigla pode ser enganadora. Embora o PTB tivesse forte ligação com os sindicatos, seria um erro atribuir ao treinador qualquer inclinação à esquerda: em seu livro de memórias, Flavio Costa comenta, sem evitar o tom épico das recordações, a perseguição a Coluna Prestes pelo Brasil enquanto era soldado. Praça na caçada contra o futuro líder comunista, afirmou ter defendido o Brasil em várias de suas rememorações. Na década de 1960, o técnico seria escalado para a Grande Resenha Facit.

2.

O programa reunia os comentaristas em um cenário para colocar em jogo perspectivas distintas, por vezes antagônicas, do futebol. As transmissões ao vivo levavam aos televisores expressões histéricas ou comedidas por meio da tecnologia para irradiação imagens: a televisão começava a se popularizar no país. Ao lado do futuro treinador da seleção, João Saldanha; de um dos principais diretores de telejornalismo do século XX, Armando Nogueira; e do dramaturgo e colunista, Nelson Rodrigues, estava José Maria Scassa.

Com vivências em rádio e jornais, José Maria Scassa tentou um posto na Câmara dos Vereadores do então Distrito Federal nos anos 1950. Na corrida eleitoral pela União Democrática Nacional (UDN), vociferou contra a corrupção, a velha classe de políticos e defendeu as esperanças das futuras gerações por meio do esporte. A despeito de transitar com propriedade por círculos intelectuais e culturais da cidade, também não conseguiu o cargo ao fim da campanha. A candidatura, contudo, reacendeu algumas marcas do udenismo.

O partido oscilou muito durante seu tempo em ação, mas a delimitação rígida da divisão entre bem e mal foi uma linha permanente. Disso deriva a defesa da família, dos bons costumes, a necessidade de depurar as artes e as manifestações culturais contra diferentes tipos de depravação – e enfim a sustentação do golpe civil-militar contra as esquerdas. Em 1964 a possibilidade de reunir representantes de tendências políticas distintas, presente nos anos 1940, havia ficado para trás. Sobressaiu-se a defesa estrita da moralidade.

O mais brilhante parlamentar a conciliar o futebol e o udenismo foi Ary Barroso. Companheiro histórico de José Maria Scassa, o vereador alcançou os votos necessários na década de 1940, também perante o eleitorado carioca, e sustentou um mandato em que oscilava entre o popular e a sofisticação. Defendeu a criação do estádio do Maracanã, com grande apelo e acesso à população da cidade. Em contrapartida, fez discursos inflamados contra quem transitava pela cidade em roupas de banho depois de mergulhar na orla.

A dupla de amigos udenistas mantinha o bom-humor em suas participações na radiodifusão e talvez isso tenha facilitado a popularização de seus comentários sobre o futebol. Ary Barroso não chegou a presenciar a queda do presidente João Goulart: morreu no carnaval anterior à investida de militares, com o apoio civil, em direção ao poder. Apesar de especulações, José Maria Scassa não se candidataria novamente e continuaria na cobertura esportiva. Não conseguiu resistir à cirurgia cerebral que, em 1980, interrompeu sua vida.

3.

A relação do udenismo com o esporte não seria uma particularidade do Rio de Janeiro. O popular radialista Nicolau Tuma chegaria ao Legislativo como candidato do partido. Um breve histórico do parlamentar realça conexões com o moralismo: foi a voz da indignação dos paulistas contra Getúlio Vargas em 1932, por meio da Rádio Record, e passou a ser reconhecido como speaker-metralhadora – que tanto diz respeito à pronúncia perfeita das palavras em a velocidade quanto à agressividade com que se expressava em público.

Assim como Ary Barroso, Nicolau Tuma se formou em direito: é conhecido o fascínio que os bacharéis da UDN exerceram em segmentos consideráveis das classes médias urbanas. A relação com grupos universitários não foi incomum durante a existência da legenda. A ideia de pureza, simbolizada pelos lenços brancos das campanhas do partido, igualmente cativou empresas de comunicação. Foi constante a adesão dos conglomerados midiáticos aos candidatos udenistas. Questões econômicas foram determinantes para a aliança.

Há indicativos de que o narrador foi o responsável pela transmissão da primeira partida realizada na recém-criada cidade de Brasília. A influência no Congresso Nacional se espalharia rapidamente pelo campo da comunicação: Nicolau Tuma foi o relator do Código Brasileiro de Comunicação em 1962. Na comparação com os demais udenistas do futebol, o deputado foi o que de mais perto acompanhou os desdobramentos políticos, culturais e sociais da ofensiva antidemocrática de 1964.

Com a imposição do bipartidarismo pelo regime, passou a representar a Aliança Renovadora Nacional (Arena). A sigla reuniu os apoiadores da ditadura e intensificou as plataformas morais que atraíram as frações médias da população para o golpe. Na legenda se agruparam ainda outros parlamentares ligados ao esporte, como Veiga Brito e Wadih Helu, presidentes respectivamente de Flamengo e Corinthians. A família do narrador também entrou para a política institucional: o delegado Romeu Tuma chegou até ao cargo de senador.

4.

As impressões dessa trajetória facilitam, pelo menos, a compreensão dos fatores que levam à atual legislatura: no Senado, a presença de Jorge Kajuru faz eco a alguns desses traços. Com mudanças sucessivas de legendas, o parlamentar se escorou na defesa da moralidade no futebol para, inicialmente, construir uma reputação como comentarista esportivo; e, posteriormente, para chegar ao Congresso em período de profunda negação aos partidos tradicionais. A adesão de Romário ao bolsonarismo também fica menos misteriosa.

A linhagem das candidaturas que cruzam política, esporte comunicação não exclui a existência as manifestações mais democráticas e subversivas em torno do futebol. É possível identificar movimentos e até candidatos que se lançaram nas disputas contra o conservadorismo desde o século XX. É necessário, contudo, avaliar se essas expressões antiautoritárias também não esbarraram em moralismos – a leitura genealógica apresenta apenas vultos com inclinação à direita. É, vale ressaltar, somente um esboço.

O traçado de uma frágil história dessa moral enviesada e rígida não oferece respostas automáticas sobre os motivos que tornaram possíveis a emergência da conexão com o futebol há quase um século. A reação mais instintiva é apontar o cristianismo como um fator que direciona esse horizonte político – não é o suficiente. Nem o catolicismo nem a recente explosão neopentecostal justificariam mecanicamente a popularidade de comentaristas e, de modo subsequente, os votos conquistados nas urnas.

Relações econômicas, conflitos de ordem social e transformações culturais se encontram com tradições populares na circulação dos comentaristas esportivos. As multidões envolvidas com o esporte, desde a consolidação da radiodifusão no Brasil, proporcionam tentativas de controle e insubordinações. Aparentemente, o moralismo pode ser uma forma de, simultaneamente, estabelecer padrões excludentes com grande alcance e aproveitá-los com finalidades eleitorais.

*Helcio Herbert Neto é pós-doutorando no Departamento de Estudos Culturais e de Mídia da UFF. Autor do livro Palavras em jogo. [https://amzn.to/4aaGzfF]


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